Duas gerações antes nascia em Lisboa a Noémi, tia avó da candidata deste episódio. Por circunstâncias republicanas, a família mudara-se para Lisboa enquanto o pai Victor Macedo Pinto era presidente da Câmara de Deputados na I República.
Noémi era a quinta filha de seis irmãos, uma família de gente bonita. Na sua meninice e juventude repartiu o seu tempo entre Tabuaço e a Foz, no Porto. Antes, a família Macedo Pinto levara 250 anos a plantar as suas Quintas pelo vale do Távora até ao rio Douro. As quintas do Hospital, do Monte Redondo, do Rio Bom, do Fornelo, das Carvalhas, do Espinho, do Fontão e do Filôco. Da sólida componente vinhateira vinham os recursos para construir a escola agrícola, o jardim botânico e inúmeras benfeitorias. Na casa grande de Tabuaço vivia uma família erudita, culta, republicana. Os filhos eram licenciados e as filhas frequentavam boas escolas ou tinham perceptoras estrangeiras, formas responsáveis de atenuar o vazio do isolamento, num tempo em que do Porto a Tabuaço era um dia de viagem, que começava de comboio e acabava a cavalo. Naquele mundo de homens, bem cedo Noémi percebeu a diferença entre o apelo da terra e a magia da cidade.
A vida de Noémi é fascinante. Bonita e inteligente, culta e sensível, irónica e imprevisível. Tinha charme natural, generosa, cativante.
Viveu, muitas vezes intensamente, o apaixonante século XX. O advento republicano, a revolução soviética, o milagre de Fátima, o imobilismo do Estado Novo, o genocídio da guerra de Espanha, hecatombe da II guerra mundial, a dramática guerra colonial, a esperança do 25 de Abril. E, o delicioso ressurgimento do pós-guerra, as liberdades, a democracia, a afirmação das mulheres, as independências, os espantosos anos 50, 60 e 70.
Teve dois filhos do primeiro casamento com o filho de uma família fidalga do Marco de Canavezes. Conviveu com os últimos vestígios do feudalismo e percebeu a importância do charme discreto dos solares e dos brasões. Viúva muito cedo, com dois filhos pequeninos, arranjou emprego em Lisboa. “Para Lisboa, sozinha? … deixar os filhos com os avós? Uhm!”

Deixou a casa de Nevogilde, que acabara de instalar, e desdobrou-se entre os filhos no Porto e o emprego em Lisboa. Seis anos depois volta a casar com o médico que operou o filho, de quem veio a ter mais dois filhos, e fixa-se em Lisboa. Cirurgião notável, humanista, descendente da melhor aristocracia europeia, permite que Noémi enriqueça a sua extensa rede de relações. Ligadas à música, às artes plásticas, às letras, à política. Convive e recebe em casa alguns dos personagens mais notáveis da sociedade de então. Com ela comecei a decifrar Vieira da Silva, a ouvir as poesias de Nietzsche, que me traduzia, a perceber o que era uma sinfonia de Beethoven, a apreciar o lied de Schubert, a descobrir Pessoa. Íamos juntos aos concertos, ao teatro, aos espetáculos. Escrevíamos cartas um ao outro, éramos muito amigos, sentimentos mudos de profundo afecto.